Quem foi “Irmão José”, o missionário da Amazônia

Seita criada pelo missionário acreditavam no apocalipse e gostavam de regras ultraconservadoras.
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FRANCISCO COSTA
16 janeiro 20236 minutos de leitura
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Irmão José da Cruz (Divulgação)

FRANCISCO COSTA - Voz da Terra 

Um homem de estatura mediana, barba longa e magro. Se vestia como um frade Franciscano e sua túnica ou batina branca, deixava à mostra apenas mãos e pés. Calçava sandálias simples, feitas com correias de couro ou andava descalço. Tinha uma fala mansa, de bom baixo e sotaque do sudoeste do Brasil. Era um homem pequeno e muito carismático, segundo relatos.

A vida de José Francisco da Cruz, conhecido com "Irmão José (da Cruz)", sempre foi um mistério. Em meados de 1999 a história de sua vida virou notícia nos grandes jornais do Brasil.

Os depoimentos eram de que ele afirmava ser santo. Informações dão conta, que por volta dos anos 70, ele fundou a “Ordem da Santa Cruz”. Em uma das cartas que fez para seus seguidores dizia ter tido uma “visão celestial divina”, aos 21 anos de idade, para seguir pelo mundo divulgando o evangelho cristão.

Em trechos da carta, publicados pelo jornal Folha de São Paulo, afirmava que:

“Em 1951, dei início à minha missão. Em 62, enfrentei o mundo e a própria morte. Dormi no chão puro por sete anos e carreguei um cinto com pregos na cintura por 17 anos. Tenho 45 enfermidades e 28 cicatrizes no meu corpo….”.

Irmão José entrou no Amazonas em 1972 pelo Alto Solimões, uma região formada por nove cidades no Sudoeste do estado, acompanhado de centenas de seguidores. Em Iquitos, no Peru, montou uma base de apoiadores, entre eles muitos índios.

Para seus seguidores falava que sabia sobre o fim do mundo e que só quem estivesse ao lado da cruz (de Jesus Cristo) e símbolo de sua missão, seria salvo. Por isso, muitos devotos dele, até hoje, guardam cruzes atribuídas ao irmão.

Os nativos diziam que ele era capaz de derrubar uma árvore só com as mãos e que era santo. Na década de 70, chegou a ser preso em Tabatinga (AM), o que reforçou o mito de que fazia milagres. 

Quando saiu da prisão disse que sete soldados, juntos, não conseguiriam arrancar a bíblia de suas mãos. Por muito tempo sua seita continuou pregando que o fim do mundo era iminente e que só os seguidores da cruz seriam salvos.

Passou a ser chamado de “Missionário do Sagrado Coração de Jesus, Apóstolo dos Últimos Tempos, Missioneiro, Hermanito” e muitos outras denominações.

HISTÓRIA DE VIDA

O nome verdadeiro dele era José Fernandes Nogueira, mas se autoproclamava José Francisco da Cruz. Nasceu em Cristina, Minas Gerais, em 3 de setembro de 1913. Se estivesse vivo teria completado 108 anos em 2021.

Por muitas vezes, desde a adolescência, tentou ingressar na carreira sacerdotal, mas não teve sucesso. Sonhava ser padre, mas suas condições financeiras não lhe permitiram. 

Casou e teve sete filhos: o mais velho Benedito Irineu Nogueira. Uma das filhas era Maria do Carmo Fernandes, que morreu em Minas Gerais. Raimundo, outro filho, foi seminarista em Jacarezinho no Paraná.

Parte da história de “irmão José da Cruz” é contada pelo pesquisador Ari Pedro Oro (doutor em Antropologia – Estudos da América Latina, pela Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle -1985- e mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-1977)

Ari Pedro Oro publicou “Tükuna Vida ou Morte" (1977). De acordo com Oro, Nogueira vestiu a batina em 1960 e “nunca mais a tirou do corpo”.

Nas suas missões passou por São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e depois subiu para a Amazônia onde caminhou por várias localidades do Norte. 

Percorreu a selva do Peru, onde foi acolhido pela Igreja Católica, e abandonou tudo para fundar sua seita em 1972. Até hoje devotos guardam fotos e arquivos das missões do suposto profeta e relacionam essas memórias com milagres.

Na Amazônia peruana encontrou uma índia por quem se apaixonou, mas foi abandonado por ela. Fez incursões pela Venezuela e Colômbia onde dizia que iria “encontrar anjos”.

MOVIMENTO

A partir dos conhecimentos que obteve no meio religioso, moldou a “Ordem Cruzada, Católica, Apostólica e Evangélica”. Entre os rituais existia um que determinava “plantar” a cruz nas aldeias que fossem visitadas pelos membros da seita no fim das missões, sempre às 15h.

Mesmo não sendo sacerdote, fez batismos e casamentos sem autorização da Igreja Católica. Por se posicionar contrário aos movimentos católicos foi preso, apedrejado e idolatrado, dizem pesquisadores que escreveram sobre a história de Irmão José da Cruz.

A base espiritual da Irmandade Santa Cruz foi estabelecida em um braço do igarapé Juí, no Amazonas, no ano de 1970, onde criou uma comunidade denominada de Vila UPA.

Irmão José da Cruz em suas palestras para seu público falava com voz baixa, muitas vezes era inaudível. E segundo relatos de bispos e padres católicos à época, o pouco que se ouvia não fazia muito sentido, tinha pensamentos desorganizados. O público adorava suas pregações, e ele nunca disse ser curandeiro.

Durante uma entrevista em 2016, para o portal UOL, o professor e sociólogo, Pedrinho Guareschi, que escreveu o livro “A Cruz e o Poder” (1985), afirmou que o movimento religioso criado pelo Irmão José da Cruz se aproveitava do misticismo das populações indígenas para exploração econômica.

“Já nos primórdios, servia aos interesses dos coronéis do barranco porque levou os índios de volta ao aldeamento e à produção agrícola, que era explorada por esses comerciantes. Agora é pelo dízimo mesmo. Todos esses dogmas têm motivação econômica”, disse o escritor.

Para o sociólogo, o fundador da seita – com quem Guareschi esteve em 1980 – não era um charlatão. "Era um beato em alto grau de convicção, um indivíduo que não conseguiu ser padre e que ficou com esse estigma pelo resto da vida. Ele nunca tirou proveito pessoal da sua crença e nem da sua peregrinação. Mas outros tiraram”, disse.

Por volta de 2016, o movimento religioso criado por José Francisco da Cruz teve seu renascimento em diversas comunidades da Amazônia e grande parte da América Latina.

A irmandade da Santa Cruz cresceu durante muito tempo no leito de rios no Norte do Brasil. Onde havia uma cruz vermelha de cinco metros era sinal de que alí estavam “irmãos”, como se autodenominavam os membros.

Ainda existem grupos organizados na Argentina, Peru e Colômbia. Os integrantes não aceitam fumantes, consumidores de bebidas alcoólicas e quem gosta de futebol. Mulheres menstruadas não podem entrar na igreja e o machismo era predominante.

Reafirmam que, no fim do mundo só sobreviverá quem suportar carregar a cruz da igreja. O dízimo de 10% é obrigatório e quem não tiver como pagar deve contribuir com bens pessoais ou suor do trabalho. Mas nem tudo era assim no começo da seita, as regras foram mudando ao longo do tempo.

O movimento religioso cresceu entre os índios Ticuna que sobreviveram na fronteira do Brasil com o Peru. Eles também acreditavam no apocalipse e gostavam de regras ultraconservadoras.

“A Santa Cruz mistura catolicismo popular e pentecostalismo”, disse para a revista Isto É, o antropólogo Ari Pedro Oro, que foi professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

“Os Ticuna tinham um passado messiânico, esperavam pelo retorno de um herói mítico. O que era dito pelo fundador da seita e se encaixou no que eles já acreditavam”.

“A ideia do fundador era mudar o conjunto da sociedade. Por isso, ele não deixou só lideranças religiosas, mas políticas e econômicas também. Isso criou um grande controle social”, afirmou Oro.

MEMÓRIA

Em um vídeo de pouco mais de sete minutos publicados na internet, um homem com as características do “Irmão José da Cruz” aparece falando com algumas pessoas em uma região de selva. Apesar da baixa qualidade das imagens é possível ouvir alguns trechos dos diálogos.

“Propagai o santo evangelho salvando o nosso santo Brasil. Ô Amazonas querida, vamos guiar o teu povo pelo novo rito que Deus nos deu. Ô Amazônia querida, siga a boa nova nascida do lábio do mestre Galileu”, diz os trechos da canção que seria interpretada no vídeo por José da Cruz.

Um homem oferece ajuda ao irmão, enquanto ele debulha milho para galinhas. As imagens terminam com uma canção religiosa. “Eu confio em nosso Senhor, com fé, esperança e amor…”.

Essa é uma das últimas memórias onde é possível olhar e ouvir diálogos que seria atribuído ao "Irmão José da Cruz."
 

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